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O olho do

abismo

#TALES-OF-BETWEENLANDS ã…¤ã…¤#NPC'Sㅤㅤ#QUIMERE-WATERLOO

ㅤㅤO garoto não passava disso, um garoto. Era assim que ele era chamado, e era assim que se configurava. Pela enésima vez tentava fugir do Limbo, seu lugar de prisão, e também de crescimento. Aquela tentativa tinha sido um sucesso, mas não o bastante para que seu pai não viesse às suas costas como um canibal. Sabia que precisava fugir e se esconder, sabia onde precisava chegar, mas o sentia com o bafo quente cada vez que fechava os olhos.

ㅤㅤAinda assim, descia pela longa escadaria que levava aos túneis da pequena cidade de Hillside, cujos prados antes cobertos de abetos e coníferas agora estavam submersos em uma fina camada de neve, produto da primeira nevasca do ano. Os flocos se aglomeravam sobre a grama já morta, prestes a hibernar, e o permafrost do alto da montanha dava cada vez menos indícios de um derretimento. Aquele lugar era simplesmente magnífico, e o entardecer cujo sol poente pintava o céu de vermelho e rosa sob o fundo majestosamente branco fazia tudo parecer tão simples e distante de qualquer problema que era impossível acreditar, se dissessem, que tudo ali estava prestes a virar de ponta cabeça.

ㅤㅤMas assim aconteceu. E esse fato tornaria a acontecer inúmeras vezes sob a linha do tempo que se propagava em todas as direções possíveis, mas sempre retornava ao ponto de início.

ㅤㅤE o pé do Rasputin finalmente toca o lugar mais profundo da caverna, onde o líquen que escorre das paredes parece iluminar de maneira tão frágil que não auxilia em nada a visão. Prevenido, trazia junto consigo sempre uma lanterna, que o guiaria cada vez mais a fundo dentro da caverna.

ㅤㅤFora lá que encontrou os primeiros sinais de magia arcana, cujas runas estavam dispersas por todo o canal e brilhavam num pulso mágico tão sutil que apenas o invocador era capaz de sentir. Não era a magia infernal com a qual estava acostumado, mas uma mais pura, mais simples. A natureza se içava para fora como se o tentasse alcançar, mas voltava ao fundo de si mesma toda vez que percebia o que estava lá fora.

ㅤㅤFosse quem fosse, o lugar parecia saber quem era Alabama Rasputin, e não o queria ali.

ㅤㅤApós avançar pela ponte de pedra depois de um grande salão que de tão magnífico parecia ter sido construído a dedo por um deus, o rapaz se viu em frente a um grande portão. Conhecia as lendas, ou ao menos julgava conhecer. “O Portão para Qualquer Lugar.”, disse a si mesmo em voz baixa, enquanto encarava os detalhes bem cravados na pedra que suportava o portal. 

ㅤㅤUma dezena de encantamentos o levariam para qualquer lugar que quisesse ir, mas ele tinha interesse apenas em um.

ㅤㅤHá muito tempo já tinha decidido que se afastar e fugir do seu pai não era o suficiente, mas derrotá-lo e assumir o seu lugar no inferno seria o essencial. E as lendas muito antigas voltavam sempre a falar de uma criatura, de um lugar perdido no tempo, fora de tudo o que se era possível imaginar.

Um lugar profundo, vazio.

ㅤㅤNão havia um vivente que quisesse mais aquele poder do que o Rasputin, e ainda que os seus cabelos castanhos e pele rosada pudessem lhe servir de disfarce por muito tempo, conquistar um poder para derrotar o seu pai o faria ser respeitado. Mas havia riscos, como tudo o que se pode fazer com magia, e ele tinha plena consciência disso. Ainda que pudesse desencadear algo ruim, não podia perder a chance de tentar.

ㅤㅤE assim o fez.

ㅤㅤCom o badalar da meia noite, seus dedos finalmente iniciaram a sequência de atos profanos, e quando começou a recitar o encantamento numa língua que não conseguia conceber ou compreender, percebeu que perdera o controle de si mesmo, e que já não agia mais por conta própria.

ㅤㅤSeus olhos, de azuis, tornaram-se brancos, e a sua boca se abriu numa posição estranha, incapaz de ser descrita por meras palavras, enquanto aquela voz - que a essa altura já nem se configurava como tal, talvez sendo apenas uma projeção da sua psiquê - entoava cânticos antigos e desconhecidos, cheios de poder e uma necessidade.

ㅤㅤA ponte atrás das suas costas ruiu, e os seus destroços caíram no rio translúcido que corria logo abaixo, banhado de magia pura. Aquelas águas nunca chegavam à superfície, retornando a nascente assim que encontravam o fim da rota. E o tom da corrente de mana se intensificou, e de holográfico passou a ser vermelho, e então preto, para finalmente se desprender em uma cor nova, que jamais tinha sido vista.

ㅤㅤ“Yar ng hnahh cahf llll mgepnog f' ah'nt vulgtmnah ngnah mgvulgtnah, f' ahehyee ah”, encerrou ao fim, e os portões ruidosamente começaram a se abrir.

ㅤㅤO corpo usado de Alabama caiu, e ele se sentiu exausto e cansado. Não haviam forças dentro de si, e qualquer coisa que houvesse naquelas páginas roubadas dos tesouros infernais o tinham deixado completamente fora de si, exaurido quase toda a sua magia. 

ㅤㅤHouve apenas um fragmento de segundo, até que as portas fossem interrompidas de se abrirem, e na pequeníssima fresta que se abrira, era possível ver que o que quer que houvesse do outro lado não deveria sair. 

ㅤㅤMas Alabama queria, ansiava por aquele poder. E por isso, olhou ao redor em busca do responsável por interromper o seu ritual. Do outro lado, vestido em trajes imperiais, um garoto com um par de asas brilhantes se esforçava para, com as suas vinhas e raízes, prender os portões. Ao seu lado haviam duas crianças, ambas com asas. Uma delas era capaz de voar, o garotinho, enquanto a garota não conseguia, mas carregava um pequeno livro que se assemelhava a um grimório antigo. As duas crianças estavam logo em frente a um homem pouco mais velho, sem asas e sem adornos, com o rosto sujo e os dedos que se movimentavam rapidamente.

ㅤㅤ“Você não sabe o que está fazendo.”, disse o homem sem asas.

ㅤㅤ“Isso é o fim de tudo.”, completou aquele que voava. “Esse é um caminho para a destruição não apenas desse mundo, mas de todos.” Ele parecia estar muito cansado e com dor, enquanto o esforço que fazia com as suas vinhas o drenava a cada segundo. As duas crianças pareciam estar tentando ajudar de alguma forma, mas não parecia estar sendo efetivo. “Quim, por favor, faça ele parar. Não vou aguentar muito tempo.”

ㅤㅤ“Me dê as páginas. Vamos desfazer isso.”, disse ele, se aproximando e estendendo a mão.

ㅤㅤEm súbito, uma grande espada se formou nas mãos do garoto que estava no chão. Ele olhou para Quimere como se ainda não tivesse se dado por vencido, na intenção de duelar, mas a sua posição era frágil e ele estava cansado. 

ㅤㅤ“Eu preciso disso.”, exclamou o Rasputin.

ㅤㅤQuimere, por sua vez, avançou. Havia uma aura azulada ao seu redor que apenas o infernal era capaz de enxergar. Quando a investida pareceu mais próxima, o bruxo imediatamente contrapôs a vontade do mago e lançou sobre ele uma pequena salamandra, que abriu as asas e expeliu fogo contra o seu rosto. Sem esperar por aquilo, Quimere se desesquilibrou e caiu de costas. Aquele descuido foi o suficiente para que Alabama corresse rapidamente até as vinhas e as cortasse com um único golpe da sua espada.

ㅤㅤDepois daquilo não houve mais tempo, espaço ou forma.

ㅤㅤUma explosão se expandiu por aquela caverna e reverberou em todas as realidades. O que sobrou dos que estavam ali naquela noite varia de acordo com a narrativa. Alguns dizem que a família de magos-fae foi dizimada pelo bruxo que adquiriu um pequeno fragmento do que conseguiu passar para o outro lado. Outros dizem que eles conseguiram escapar, mas que estão cegos e surdos até o dia vigente. Alguns mais atrevidos dizem que toda a família foi obliterada, se não, tragada para dentro do que havia do outro lado.

ㅤㅤMas todas as versões são idênticas numa parte.

ㅤㅤOs olhos de Alabama viram o deleite mínimo do que contemplava do outro lado, e o que havia dentro dele deixou de existir. Sua mente alcançou algo tão profundo e distante que era impossível trazer descrição exata dos momentos, mas era como se passado, presente e futuro convergissem num único segundo, um fragmento de tempo. 

ㅤㅤTodas as versões falavam que as visões mostraram uma criatura que não tinha forma, iluminação e que não se apresentava como matéria. Era um pensamento pulsante, pungente e que reverberante, que, logo após encontrar a mente do pobre infernal, se apoderou dele com um único desejo de transcender o caos e dominar o que havia naquele novo mundo descoberto. Sua mente se ligou a tudo, e o tudo agora fazia parte dele. 

ㅤㅤEle se tornou Eles, e Eles eram um só.

ㅤㅤO Invocador.

ㅤㅤAntes em lendas e selado com magia, agora liberto e preso em um fragmento mísero que era capaz de se acomodar naquele pedaço pequeno de matéria. Havia uma cor que se projetava da boca, dos olhos, e do peito dele: branco. Naquele momento, tudo, em todo lugar e em todos os tempos brilharam num tom específico.

ㅤㅤBranco. Azul. Vermelho. Verde. Amarelo. Turquesa. Rosa. Preto. Cinza. Laranja. Índigo.

ㅤㅤVerde limão.

ㅤㅤE ele viu tudo, tudo o que havia para ver. Vislumbrou guerras inúmeras, uma família dizimada de lobos, uma crescente e insurgente guerra nas terras de Asgard, viu o Armageddon e mais e mais guerras, viu uma escola dominada por um espírito maligno, viu um acampamento que escondia um segredo, viu a insurgência de uma grande força, e a explosão de todo o cosmos.

ㅤㅤE sorriu.

ㅤㅤA porta se fechou, deixando para trás aquela realidade. O Invocador, por outro lado, tinha saltado para algum outro lugar. Um lugar que não ficava nem em cima, nem embaixo, mas no meio. No meio das realidades, no meio da linha do tempo.

ㅤㅤNo centro do Mobius.

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